A única amiga
- uma história rebuscada de aparente racismo
Ano de escolaridade: 4.º.
[Creio que não vou conseguir contar este episódio de forma muito exata. Mas da essência recordo-me, por isso vou avançar... Os nomes são inventados.]
Perto do fim do ano letivo, uma Mariana desesperada, quase em lágrimas, aparece na sala num intervalo grande, acompanhada da colega Luísa. Apresenta-me o seu problema:
- Professora, todas as meninas estão chateadas comigo e já não são minhas amigas porque dizem que eu chamei nomes [não me lembro o quê] à Inês, por ela ser preta, mas eu não chamei! Só a Luísa é que acredita em mim - ela é a única amiga que eu tenho agora. E a Carla [uma menina robusta com tendência para resolver os problemas à pancada, de pele escura tal como a Inês*] diz que me vai bater por eu ter dito aquilo, mas eu não disse!
Pedi que fossem chamar as visadas. Vieram. Coloquei cadeiras para ficarmos sentadas em roda, as cinco: Mariana, Luísa, Inês, Carla e eu.
Expliquei o que me tinha sido relatado e dei a palavra à Inês e também à Carla. Resumindo: alguém disse à Inês que outra pessoa tinha ouvido a Mariana dizer aquilo. Nem a Inês, nem a Carla, nem ninguém da turma tinha ouvido a ofensa, mas todAs acreditaram no relato [não escrevo todOs, porque os rapazes estavam longe disto]. É o famoso e comum "diz que disse".
Perguntei à Carla se era verdade que tinha ameaçado bater à Mariana. Assumiu que sim.
Eu: Já pensaste que pode ser mentira? Que se calhar a Mariana não disse nada? Mesmo que tivesse dito, as coisas não se resolvem a bater, não é? Mas ela pode nem sequer ter dito nada e tu, só porque alguém disse que ela disse, pensavas bater-lhe? Achas isso bem?
A Carla encolheu os ombros, mas concordou que não. A expressão dizia, no entanto, que, se a Mariana tivesse dito aquilo, merecia que lhe batesse.
A este ponto, eu quis investigar melhor o diz-que-disse. Quem é que disse à Inês. Mandei chamar essa menina. Quem é que lhe disse a ela, etc. Parecia um novelo, e eu ia puxando o fio... A certa altura, "foi uma menina do 1.º ano que ouviu". Como só havia uma turma de primeiro ano, não seria difícil descobrir que menina tinha sido, disse eu, mesmo sem se saber o nome dela.
Nesta altura da "investigação", a Luísa diz: "Pronto, eu confesso."
Eu: Confessas o quê, Luísa?
Luísa: Fui eu que inventei que a Mariana tinha dito aquilo. Eu e ela tínhamos discutido, eu estava zangada, e então inventei que ela tinha dito aquilo. Mas ela não disse nada. [Para a Mariana]: Desculpa.
Não sei que cara fiz, mas fiquei parva. Parva com o requinte da Luísa: ela não foi dizer à Inês que ouviu a Mariana dizer aquilo, disse a outra pessoa que outra pessoa tinha ouvido a Mariana dizer aquilo. Fez a coisa de modo a que dificilmente se descobrisse a origem do boato. Depois, quando viu que toda a gente [leia-se: todas as meninas] estava contra a Mariana, que proclamava em vão a sua inocência, a consciência pesou-lhe e disse à Mariana que acreditava nela. Pudera, ela - e mais ninguém - podia ter a certeza que a Mariana não estava a mentir...
Foi uma aprendizagem para todas as envolvidas. A Inês acabou por pedir desculpa à Mariana por ter acreditado no que lhe contaram "à primeira" e ter duvidado dela. A Mariana desculpou. A Carla também lhe pediu desculpa e também foi desculpada.
A Luísa, espero, aprendeu que a mentira "tem pernas curtas" e que as zangas são normais entre amigos, mas não se resolvem com intrigas, antes pelo contrário.
Eu aprendi, de uma forma muito direta, que as crianças podem ser cruéis. Já sabia, mas ver assim, em direto, que podiam ser cruéis e tão rebuscadas, não estava à espera.
*As amizades na turma não tinham em conta o tom da pele. A Inês e a Carla não eram particularmente amigas (a Mariana era mais amiga da Inês do que a Carla, antes e depois deste episódio), pelo que não pude deixar de achar, na altura, como agora, que a Carla tinha levado a peito a alegada ofensa, por uma questão de cor.