As crianças às vezes surpreendem-nos
(não só às vezes...)
Ano de escolaridade: 3.º.
Na altura eu era professora titular de turma no 1.º ciclo do Ensino Básico. Trabalhava numa escola pequena, com apenas cinco turmas. Era professora da turma desde que estavam no 2.º ano, que tinha sido o primeiro ano que tinha trabalhado naquela escola.
Sem querer entrar em pormenores sobre a forma como organizava o meu trabalho com a turma, terei de dizer algumas coisas, para contextualizar o episódio que quero contar - o tal que justifica o título deste post.
Havia na sala, desde o início do 2.º ano, um Diário de Turma (DT) - uma folha A3 dividida em colunas, com os títulos "Gostei", "Não gostei", "Proponho" (estes títulos podiam ter e tiveram alterações, e chegámos a ter quatro colunas, em dada altura). Neste DT, os alunos (e eu também) escreviam o que achassem que deviam escrever, sabendo que tudo o que escrevessem seria lido e devidamente discutido na reunião que tínhamos semanalmente (onde fazíamos outras coisas para além de ler e discutir o DT, mas isso agora não é para aqui chamado).
Como é natural, algumas crianças participavam mais na reunião do que outras. Algumas, garanto-vos, parecia que estarem lá ou não estarem era exatamente a mesma coisa, semana após semana.
Quando iniciámos o 3.º ano, recebemos três novos alunos: o JF, o JP e a J (sim, por coincidência todos tinham nomes começados por "j"!). A J tinha mais um ano do que o resto da turma, por ter ficado retida ("chumbado", para quem não esteja familiarizado com o termo oficial) uma vez, e o JP tinha mais dois anos, por ter ficado retido duas vezes.
Ao fim de pouco tempo de aulas, o DT começou a ficar cheio de ocorrências negativas a respeito do JP, porque, após os primeiros dias de adaptação, começou a bater nos colegas "a torto e a direito", aparentemente sem sequer ser provocado.
Na reunião, quando se lia alguma ocorrência negativa, a pessoa que a tinha escrito podia explicar melhor o que se tinha passado. Depois, dava-se a palavra à pessoa visada (se houvesse alguém), para se justificar ou apresentar a sua versão dos factos. Depois, outras pessoas que tivessem testemunhado ou tivessem algo a acrescentar sobre o assunto poderiam também falar. Da discussão poderia resultar um pedido de desculpa, uma proposta de ajuda, um compromisso, enfim... o que nos parecesse mais pertinente.
Ora, no caso do JP, quando lhe foi dada a palavra, ficou calado. Não se defendeu, não acusou ninguém de o ter provocado, mas também não assumiu nenhuma culpa. Mesmo quando várias testemunhas disseram que ele tinha agredido os colegas de forma gratuita (não usaram estas palavras!), o JP ficou em silêncio. Deixou-nos [a mim sei que deixou] sem saber que fazer, ou que dizer, para além de apelar a que nos dissesse algo, que nos dissesse o que lhe tinha passado pela cabeça, para tentarmos perceber por que razão magoara colegas sem eles lhe terem feito (nem dito) nada de mal. Não se tratava, de todo, de decidir um castigo ou algo semelhante. Queríamos perceber para poder ajudar a evitar que a situação se repetisse.
Eis senão quando, a N, uma aluna que, desde o 2.º ano, não participava nas reuniões, por iniciativa própria (e que parecia não ligar nada ao que lá fazíamos), pede a palavra e, quando lha dão, diz, calmamente [é claro que não consigo reproduzir o discurso, mas acho que consigo ser fiel à sua essência]:
"Se calhar o JP, na outra escola, ... se calhar batiam-lhe, e agora ele veio para esta, e, como ninguém lhe bate, ele começou a bater, por causa do que lhe fizeram na outra escola."
Acaba ela de falar, ou enquanto ainda falava, já não recordo bem, o JP começa a chorar, convulsivamente. Chorou tanto quanto precisou. Quando acalmou, disse que era exatamente aquilo. Na escola anterior, tinha sido vítima constante de outros miúdos, sem se conseguir defender. Tinha "metido para dentro" toda a raiva, frustração, dor, o que fosse, que sentia e, na nova escola, ao ver-se no meio de crianças que não o tratavam mal, "deitou cá para fora" tudo o que o tinha oprimido, acabando estas por "pagarem" o mal que as outras lhe tinham feito.
A partir daquela reunião, o JP não voltou a agredir os colegas (ou, pelo menos, não mais do que qualquer outro, em pequenos conflitos). Não era realmente uma criança violenta, era até bastante calmo, e assim continuou, bem mais feliz na escola do que tinha sido anteriormente, até ao fim do 4.º ano.
Este episódio mostrou-me que nem sempre sabemos o que vai na cabeça das outras pessoas. A N. surpreendeu-me muitíssimo, ao apresentar aquela reflexão hipotética, que se revelou tão certeira, e que contribuiu de forma tão decisiva para o desfecho feliz de uma situação complicada (e que se poderia ter agravado nas semanas e meses seguintes).
Por outro lado, o comportamento do JP veio confirmar a ideia, tantas vezes transmitida em séries de crimes (e não só), de que muitas vezes uma pessoa vítima de abuso de certo tipo se torna ela própria abusadora do mesmo tipo. Normalmente, nas séries, isso acontece mais se não tiver havido acompanhamento psicológico da pessoa enquanto vítima, para a ajudar a processar e a ultrapassar aquilo por que passou. Eu sei que há abusos muito piores do que miúdos a baterem em miúdos, mas não deixa de ser uma experiência traumatizante para quem a vive.
Agrada-me, nesta memória, pensar que o que fazíamos (o DT, a reunião semanal) foi fundamental para que o JP pudesse ultrapassar o que tinha passado e virar uma nova página no seu percurso. Agrada-me igualmente pensar que a aparente "mosca morta" (a N) durante as reuniões estava afinal bem viva!