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Retalhos da vida de uns professores

Por aqui contamos episódios que se passaram dentro de uma sala de aula. Se és professor e quiseres, junta-te a nós!

Por aqui contamos episódios que se passaram dentro de uma sala de aula. Se és professor e quiseres, junta-te a nós!

Retalhos da vida de uns professores

21
Jul20

Afinal vale a pena...

Mäyjo

Ano de escolaridade: 12.º.

 

Este é o meu primeiro post por aqui. E se calhar não começo bem, porque pode parecer que "me quero gabar"... Mas não resisto a partilhar o que me acabou de acontecer.

Vou verificar a caixa de entrada de um e-mail que tenho, apenas para os alunos entregarem trabalhos, e eis que encontro uma mensagem de um aluno de há vários anos.

Espanto! Ainda se lembrava de mim. Foi meu aluno durante o 3º ciclo e acabou agora o 12ºAno: queria agradecer-me por na época “lhe ter dado na cabeça” (bem não o disse assim, mas eu sei que era o que achavam – só lhes picava o miolo).

Agora, estes anos depois, escreve: “Stora eu confesso, fora de brincadeiras, tenho saudades suas e das suas aulas, para não falar das críticas que fazia, mas eram só para o meu bem”. Refere que o fiz crescer e que colocou em prática tudo o que lhe ensinei. Diz “Não consigo encontrar as palavras para descrever tudo o que fez”.

É bom saber que fomos importantes para os nossos alunos e que fizemos a diferença, mesmo que na altura não o queiram admitir.

Costumo dizer que “podem não aprender nada de Geografia, mas se conseguir que se tornem melhores pessoas, já ganhei o ano!” E é verdade, pois se se tornarem “melhores pessoas” com certeza terão aprendido muito e coisas bem importantes, válidas e úteis para a sua vida de alunos e também para o seu futuro! Coisas que lhes vão abrir portas e desbravar caminhos em direção à concretização dos seus objetivos.

Hoje o R provou-me que final sempre consigo ajudar jovens a tornarem-se melhores pessoas e a reunirem as ferramentas para alcançarem os seus objetivos!

E pelo caminho acho que sempre vão aprendendo algumas coisitas de Geografia.

São estes momentos que fazem valer a pena a vida de uma professora!! Mesmo que surjam anos depois...

 

18
Jul20

A única amiga

- uma história rebuscada de aparente racismo

Bruxa Mimi

Ano de escolaridade: 4.º.

 

[Creio que não vou conseguir contar este episódio de forma muito exata. Mas da essência recordo-me, por isso vou avançar... Os nomes são inventados.]

 

Perto do fim do ano letivo, uma Mariana desesperada, quase em lágrimas, aparece na sala num intervalo grande, acompanhada da colega Luísa. Apresenta-me o seu problema:

 

- Professora, todas as meninas estão chateadas comigo e já não são minhas amigas porque dizem que eu chamei nomes [não me lembro o quê] à Inês, por ela ser preta, mas eu não chamei! Só a Luísa é que acredita em mim - ela é a única amiga que eu tenho agora. E a Carla [uma menina robusta com tendência para resolver os problemas à pancada, de pele escura tal como a Inês*] diz que me vai bater por eu ter dito aquilo, mas eu não disse!

 

Pedi que fossem chamar as visadas. Vieram. Coloquei cadeiras para ficarmos  sentadas em roda, as cinco: Mariana, Luísa, Inês, Carla e eu.

Expliquei o que me tinha sido relatado e dei a palavra à Inês e também à Carla. Resumindo: alguém disse à Inês que outra pessoa tinha ouvido a Mariana dizer aquilo. Nem a Inês, nem a Carla, nem ninguém da turma tinha ouvido a ofensa, mas todAs acreditaram no relato [não escrevo todOs, porque os rapazes estavam longe disto]. É o famoso e comum "diz que disse".

 

Perguntei à Carla se era verdade que tinha ameaçado bater à Mariana. Assumiu que sim. 

Eu: Já pensaste que pode ser mentira? Que se calhar a Mariana não disse nada? Mesmo que tivesse dito, as coisas não se resolvem a bater, não é? Mas ela pode nem sequer ter dito nada e tu, só porque alguém disse que ela disse, pensavas bater-lhe? Achas isso bem?

A Carla encolheu os ombros, mas concordou que não. A expressão dizia, no entanto, que, se a Mariana tivesse dito aquilo, merecia que lhe batesse. 

 

A este ponto, eu quis investigar melhor o diz-que-disse. Quem é que disse à Inês. Mandei chamar essa menina. Quem é que lhe disse a ela, etc. Parecia um novelo, e eu ia puxando o fio... A certa altura, "foi uma menina do 1.º ano que ouviu". Como só havia uma turma de primeiro ano, não seria difícil descobrir que menina tinha sido, disse eu, mesmo sem se saber o nome dela. 

 

Nesta altura da "investigação", a Luísa diz: "Pronto, eu confesso."

Eu: Confessas o quê, Luísa?

Luísa: Fui eu que inventei que a Mariana tinha dito aquilo. Eu e ela tínhamos discutido, eu estava zangada, e então inventei que ela tinha dito aquilo. Mas ela não disse nada. [Para a Mariana]: Desculpa.

 

Não sei que cara fiz, mas fiquei parva. Parva com o requinte da Luísa: ela não foi dizer à Inês que ouviu a Mariana dizer aquilo, disse a outra pessoa que outra pessoa tinha ouvido a Mariana dizer aquilo. Fez a coisa de modo a que dificilmente se descobrisse a origem do boato. Depois, quando viu que toda a gente [leia-se: todas as meninas] estava contra a Mariana, que proclamava em vão a sua inocência, a consciência pesou-lhe e disse à Mariana que acreditava nela. Pudera, ela - e mais ninguém - podia ter a certeza que a Mariana não estava a mentir...

 

Foi uma aprendizagem para todas as envolvidas. A Inês acabou por pedir desculpa à Mariana por ter acreditado no que lhe contaram "à primeira" e ter duvidado dela. A Mariana desculpou. A Carla também lhe pediu desculpa e também foi desculpada.

 

A Luísa, espero, aprendeu que a mentira "tem pernas curtas" e que as zangas são normais entre amigos, mas não se resolvem com intrigas, antes pelo contrário.

 

Eu aprendi, de uma forma muito direta, que as crianças podem ser cruéis. Já sabia, mas ver assim, em direto, que podiam ser cruéis e tão rebuscadas, não estava à espera. 

 

 

*As amizades na turma não tinham em conta o tom da pele. A Inês e a Carla não eram particularmente amigas (a Mariana era mais amiga da Inês do que a Carla, antes e depois deste episódio), pelo que não pude deixar de achar, na altura, como agora, que a Carla tinha levado a peito a alegada ofensa, por uma questão de cor.

07
Jul20

O dia em que o cão comeu o trabalho

o acumulador de nadas
Ano de escolaridade: 8.º.

 

Uma manhã, logo às 8.30h, entra o "Manel" na sala:

— Professora, o cão comeu o meu trabalho!

 

O Manel quis refazer uma construção geométrica em casa, gostava das coisas perfeitinhas - era esse o trabalho para Educação Visual.

O 8º ano é sempre o ano que me dá mais trabalho a gerir.

É uma idade de quando-é-que-eles-passam-esta-fase-por-amor-de-Deus, e deparo-me com as coisas mais incríveis.

 

— Manel, se não fizeste, não há problema, mas não inventes...

— É verdade, professora! Posso trazer outro? O cão comeu mesmo este!

—Não, nem quero falar mais nisso. Vai-te sentar e vamos começar a aula.

 

Na semana seguinte, o Manel traz um recado da mãe.

Onde era explicado que o Manel estava a comer cereais com o trabalho em cima da mesa, antes de vir para a escola.

Não o tinha posto na mochila para não se amachucar.

 

Aqui, o meu coração começou a apertar-se...

 

O cão, um Labrador enorme, pôs as patas em cima da mesa, entornou a tigela, começou a lamber o leite, comer os cereais... e o trabalho do Manel!

Os miúdos, a quem o Manel já tinha mostrado o trabalho, olhavam para mim... e após a minha cara estarrecida, claro que me comecei a rir!

 

Vimos todos as fotos do cão rimos muito, o Manel entregou o novo trabalho cinco estrelas...

E eu aprendi que as desculpas esfarrapadas podem mesmo acontecer... 
05
Jul20

As crianças às vezes surpreendem-nos

(não só às vezes...)

Bruxa Mimi

Ano de escolaridade: 3.º.

 

Na altura eu era professora titular de turma no 1.º ciclo do Ensino Básico. Trabalhava numa escola pequena, com apenas cinco turmas. Era professora da turma desde que estavam no 2.º ano, que tinha sido o primeiro ano que tinha trabalhado naquela escola.

Sem querer entrar em pormenores sobre a forma como organizava o meu trabalho com a turma, terei de dizer algumas coisas, para contextualizar o episódio que quero contar - o tal que justifica o título deste post.

Havia na sala, desde o início do 2.º ano, um Diário de Turma (DT) - uma folha A3 dividida em colunas, com os títulos "Gostei", "Não gostei", "Proponho" (estes títulos podiam ter e tiveram alterações, e chegámos a ter quatro colunas, em dada altura). Neste DT, os alunos (e eu também) escreviam o que achassem que deviam escrever, sabendo que tudo o que escrevessem seria lido e devidamente discutido na reunião que tínhamos semanalmente (onde fazíamos outras coisas para além de ler e discutir o DT, mas isso agora não é para aqui chamado).

Como é natural, algumas crianças participavam mais na reunião do que outras. Algumas, garanto-vos, parecia que estarem lá ou não estarem era exatamente a mesma coisa, semana após semana.

Quando iniciámos o 3.º ano, recebemos três novos alunos: o JF, o JP e a J (sim, por coincidência todos tinham nomes começados por "j"!). A J tinha mais um ano do que o resto da turma, por ter ficado retida ("chumbado", para quem não esteja familiarizado com o termo oficial) uma vez, e o JP tinha mais dois anos, por ter ficado retido duas vezes.

Ao fim de pouco tempo de aulas, o DT começou a ficar cheio de ocorrências negativas a respeito do JP, porque, após os primeiros dias de adaptação, começou a bater nos colegas "a torto e a direito", aparentemente sem sequer ser provocado.

Na reunião, quando se lia alguma ocorrência negativa, a pessoa que a tinha escrito podia explicar melhor o que se tinha passado. Depois, dava-se a palavra à pessoa visada (se houvesse alguém), para se justificar ou apresentar a sua versão dos factos. Depois, outras pessoas que tivessem testemunhado ou tivessem algo a acrescentar sobre o assunto poderiam também falar. Da discussão poderia resultar um pedido de desculpa, uma proposta de ajuda, um compromisso, enfim... o que nos parecesse mais pertinente.

Ora, no caso do JP, quando lhe foi dada a palavra, ficou calado. Não se defendeu, não acusou ninguém de o ter provocado, mas também não assumiu nenhuma culpa. Mesmo quando várias testemunhas disseram que ele tinha agredido os colegas de forma gratuita (não usaram estas palavras!), o JP ficou em silêncio. Deixou-nos [a mim sei que deixou] sem saber que fazer, ou que dizer, para além de apelar a que nos dissesse algo, que nos dissesse o que lhe tinha passado pela cabeça, para tentarmos perceber por que razão magoara colegas sem eles lhe terem feito (nem dito) nada de mal. Não se tratava, de todo, de decidir um castigo ou algo semelhante. Queríamos perceber para poder ajudar a evitar que a situação se repetisse.

Eis senão quando, a N, uma aluna que, desde o 2.º ano, não participava nas reuniões, por iniciativa própria (e que parecia não ligar nada ao que lá fazíamos), pede a palavra e, quando lha dão, diz, calmamente [é claro que não consigo reproduzir o discurso, mas acho que consigo ser fiel à sua essência]:

"Se calhar o JP, na outra escola, ... se calhar batiam-lhe, e agora ele veio para esta, e, como ninguém lhe bate, ele começou a bater, por causa do que lhe fizeram na outra escola."

Acaba ela de falar, ou enquanto ainda falava, já não recordo bem, o JP começa a chorar, convulsivamente. Chorou tanto quanto precisou. Quando acalmou, disse que era exatamente aquilo. Na escola anterior, tinha sido vítima constante de outros miúdos, sem se conseguir defender. Tinha "metido para dentro" toda a raiva, frustração, dor, o que fosse, que sentia e, na nova escola, ao ver-se no meio de crianças que não o tratavam mal, "deitou cá para fora" tudo o que o tinha oprimido, acabando estas por "pagarem" o mal que as outras lhe tinham feito.

A partir daquela reunião, o JP não voltou a agredir os colegas (ou, pelo menos, não mais do que qualquer outro, em pequenos conflitos). Não era realmente uma criança violenta, era até bastante calmo, e assim continuou, bem mais feliz na escola do que tinha sido anteriormente, até ao fim do 4.º ano.

Este episódio mostrou-me que nem sempre sabemos o que vai na cabeça das outras pessoas. A N. surpreendeu-me muitíssimo, ao apresentar aquela reflexão hipotética, que se revelou tão certeira, e que contribuiu de forma tão decisiva para o desfecho feliz de uma situação complicada (e que se poderia ter agravado nas semanas e meses seguintes).

 

 

Por outro lado, o comportamento do JP veio confirmar a ideia, tantas vezes transmitida em séries de crimes (e não só), de que muitas vezes uma pessoa vítima de abuso de certo tipo se torna ela própria abusadora do mesmo tipo. Normalmente, nas séries, isso acontece mais se não tiver havido acompanhamento psicológico da pessoa enquanto vítima, para a ajudar a processar e a ultrapassar aquilo por que passou. Eu sei que há abusos muito piores do que miúdos a baterem em miúdos, mas não deixa de ser uma experiência traumatizante para quem a vive.

Agrada-me, nesta memória, pensar que o que fazíamos (o DT, a reunião semanal) foi fundamental para que o JP pudesse ultrapassar o que tinha passado e virar uma nova página no seu percurso. Agrada-me igualmente pensar que a aparente "mosca morta" (a N) durante as reuniões estava afinal bem viva!

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